Surpresa

A palavra “surpreender” é formada por dois elementos: o prefixo sur (sobre), seguido do verbo prende, do latim prehendere, segurar, prender, apanhar. Segundo os dicionários da língua portuguesa, “surpresa” é um fato inesperado, repentino, imprevisto, que causa admiração ou espanto, também se associa a idéia de assombro, perplexidade, susto, choque ou maravilhamento. Usamos o termo em diferentes contextos, como nas expressões: “festa-surpresa”, “atacar de surpresa”. Todos esses significados estão de acordo com o que encontramos nos dicionários. No entanto, não costumamos nos confundir diante de frases do tipo: “ De hoje em diante, nada mais me espanta, nada mais me surpreende nessa vida”, mas se tomarmos o conteúdo delas ao pé da letra significaria aceitar que a surpresa como emoção pudesse ser banida de nossa vida para sempre, o que nos parece impossívelm pois ela é um equipamento ordinário na nossa relação com o mundo, e cedo aprendemos tratar-se de uma palavra marota, cuja conotação pode ser tanto negativa quanto positiva: Há surpresas boas (como um presente inesperado) e terríveis ( como as de tragédias gregas e de certos e contos de fadas). O mais difícil é enfrentar o mal-estar causado por uma miríade de surpresas que não tomam partido claro, surpresas que não são boas nem ruins, muito pelo contrário; elas nos apanham (prende) e nos mantêm suspensos no ar (sur + prehendere) por um fio indiscernível da angústia e estranheza.
O termo emoção deriva do latim emovere, que significa “pôr em movimento” em relação ao físico e a algo que se move no interior da vida psíquica.
Rene Descartes (1596-1650) expôs sua teoria sobre as emoções: separar o que é da alma do que é do corpo, num pensamento que ficou conhecido como dualismo cartesiano. Para o filósofo e matemático francês, as emoções são modificações passivas causadas na alma pela movimentação das forças mecânicas que agem sobre o corpo, ou seja, a tristeza seria uma emoção que adverte sobre algo ruim que está tomando conta do nosso organismo e nossa vida e devemos evitar. A alegria ao contrário, nos avisa das coisas que podem ser úteis ao corpo e nos incita a conservar e lutar por elas. Uma passagem interessando do livro Paixões da alma é a relação que Descartes faz das emoções mais básicas ou primitivas: o amor, ódio, desejo, alegria, tristeza e (quem diria) admiração, “A admiração é a súbita surpresa da alma, que a impele a considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros ou extraordinários”. Esse modo dual de pensar é muito mais antigo e arraigado, desde os antigos gregos, os pensadores tem a tendência de separar razão e emoção como aspectos em luta pelo controle do psiquismo humano. Para alguns, as emoções são consideradas lixos tóxicos dos quais devemos nos livrar a fim de fazer brilhar a perfeita racionalidade do mundo, para outros, elas podem guiar o espírito com a condição de que saibamos processá-las.
Em neadis do século XIX, a teoria de Charles Darwin (1809-1882) sobre as emoções foi um marco importante, pois ele procurou sustentar uma causa puramente biológica e adaptativa da evolução das espécies em busca da sobrevivência. Ele bate na tecla de que devemos encarar toda e qualquer emoção do ponto de vista de sua funcionalidade no processo de adaptação do indivíduo ao meio ambiente, para Darwin, certos padrões de resposta emocional são marcadores tão confiáveis sobre uma espécie animal quanto as formas dos ossos, dos dentes ou qualquer outra estrutura orgânica.
Atualmente, podemos citar as ciências cognitivas, que se desenvolveram muito nas últimas décadas, em parceria com as pesquisar da neurociência e da indústria décadas, em parceria com as pesquisas da neurociência e da indústria farmacêutica, elas criaram um modelo estilizado para explicar todo o comportamento humano, com uma analogia entre a mente e o computador chamado de “teoria computacional da mente”. Nela, equipara-se vida mental a um sofisticado sistema de informação e computação, nesse modelo, a mente está para o cérebro assim como o software está para o hardware. Ora sabemos que os computadores não se “emocionam” jamais, curiosamente as psicológicas cognitivo-comportamentais chamavam as emoções de “fantasmas da máquina”, o vírus que interfere no sistema e o desorganiza. Parece que as teorias computacionais da mente são pouco adequadas para compreendermos a “surpresa” em toda a sua complexidade e riqueza.
Para o pesquisador e neurocientista português Antonio Damásio as respostas emocionais não dependeriam exclusivamente do nosso cérebro, mas de sua interação com o corpo e das nossas próprias percepções corporais. A emoção desencadeada por um estímulo dá origem a um programa de ações composto de estratégias ativas (que dirigem o corpo) e cognitivas (voltadas ao pensamento), ou seja, partindo da biologia, ele postula que a emoção está implicada na razão e na tomada de decisões racionais.
Não precisamos aceitar que as emoções sejam o resultado direto do casamento entre a biologia e a seleção natural inspirada em Darwin, é isso que propõem as teses que acabamos de discutir, do modelo computacional ao pensamento de Damásio: que a natureza seja a explicação de tudo. É o que muitos chamam de reducionismo biológico. Por exemplo, a fenomenologia, uma importante corrente de pensamento que se desenvolveu no século passado, vai inteiramente contra a tese “naturalista”: pela consciência. O filósofo Edmund Husserl (1859-1938) dizia que toda consciência é consciência de algo, intencionalidade, pois se dirige para alguma coisa e a desvela, seria como uma câmera fotográfica, no próprio movimento recolhe os elementos da paisagem e os configura como uma “cena” até então desconhecida. Curiosamente, a fenomenologia chama essa atitude básica perante o mundo de surpresa, encantamento. Proponho seguir a pista do problema levantado pela oposição entre “atitude natural” (seleção e adaptação) versus “atitude não natural”, que implica uma abertura para a surpresa e o encantamento com o mundo.
Uma questão importante refere-se ao tempo. A surpresa como emoção só pode ser plenamente compreendida a partir de uma pequena subversão na odeia de tempo, de que há varias modalidades temporais simultaneamente em nossas vidas. Cada momentos equivale a um “agora” oferecido à nossa percepção e rememoração, todas as coisas passadas, presentes e futuras à disposição do sujeito, na sua presença, as coisas só tem valor quando trazidas ao “presente”, ao “agora”, por meio de representações que não deixam qualquer resto, para frente ou para trás. O tempo apropriado ao acontecer da vida humana é muito mais heterogêneo e fraturado que homogêneo e linear.Há uma cena no filme Morangos Silvestes, do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007), que inaugura uma nova temporalidade: o velho médico preocupado com a morte sonha com um relógio sem ponteiros e desperta assustado, essa idéia de tempo é muito mais condizente com a surpresa, é a vida reordenando em outras bases. A partir desse ponto, a noção de inconsciente torna-se ferramenta de outras bases. A partir desse ponto, a noção de inconsciente torna-se ferramenta indispensável, a condição mais necessária para entendermos a surpresa, conteúdos e elementos da vida psíquica que não pertencem ao campo da consciência, dela permanecem afastados graças ao dispositivo de resistência interna – repressão ou recalque. O aparelho psíquico descrito por Freud não é estático, mas dinâmico, pelas forças que o atravessam, se cruzam e por vezes se opõem, as chamadas pulsões de vida e de morte, Eros e Thanatos. Estas se situam na fronteira entre o físico e o psíquico e não se subordinam aos limites do consciente e do inconsciente.
Essa emoção nos alcança em cheio quando somos confrontados com um acontecimento que nos desaloja de um tempo que parecia sob nosso domínio. Ela nos permite entrar de forma consciente com um conteúdo inconsciente, cuja aparição nos apanha completamente desavisados, acompanhada de um esvaziamento de tensão acumulada no aparelho psíquico: uma surpresa agradável, se produzir prazer, ou desagradável se produzir desprazer.
A arte vive às voltas com os acontecimentos e desse modo lida com o acidental e o surpreendente. O processo criativo relaciona-se com a surpresa de forma complexa e multifacetada. Quando lemos Guimarães Rosa (1908-1967) percebemos a criação de novas palavras (neologismo), diante do neologismo “nonada” (fusão de não e nada), ou de uma fórmula como “sei que nada sei, mas estou desconfiado de muita coisa...” – subvertendo a famosa frase do filósofo grego Sócrates (469-399 a.C), é possível reconhecer os momentos mecanismo pelos quais a piada obtém seus efeitos, a centelha da surpresa. Os neologismos conservam a capacidade intacta de causar surpresa, de surpreender.
Além da arte, a publicidade é outro campo em que a surpresa é convocada com insistência e altamente valorizada. A surpresa é um ingrediente valorizado porque ela prepara e qualifica a sensação de novidades que parece essencial para o sucesso do empreendimento publicitário. Mas “novidade” não deve ser entendida como pura invenção, a partir do nada sem precedentes a escala de consumo. O objeto seduz porque se refere a algo do passado que retorna sob nova roupagem. Desejar o novo consumi-lo, descartá-lo, repetir o mesmo com sutis diferenças. A publicidade repetição: a repetição do “mesmo” e a diferencial, enquanto a primeira é reprodução ou copia, segunda seria produtora de diferenças ou transformações. Afinal, custa direção segura. Tudo seria mais difícil se fosse preciso começar do zero.
Consumir significa devorar, reduzir, a cinzas, desaparecer. Poderia a surpresa se esse fator de sobrevivência contra a morte precoce de nossas próprias escolhas? Será que ela possui efeito antioxidante? Aí temos um bom motivo para uma campanha publicitária: “De preferência a produtos que o surpreendam e... rejuvenesça!”

0 comentários:

Postar um comentário